Abre-alas#3
Depois do feriado estranho que quebrou a semana no meio, sem direito a pontes, emendas ou enforcamentos (dependendo de onde no Brasil você estiver nos lendo), chegamos à sexta-feira com uma única certeza: a luz no fim do túnel que São Paulo aguarda não virá da Enel. Voltamos à carga com nossa newsletter celebrando a MPB. Começamos esta edição com uma crônica sobre o dia que passei assistindo ao MPB4 se preparar para um show, no final de agosto passado. O lugar não podia ser mais significativo: o quarteto voltava a Niterói, onde começou sua história há quase 60 anos. Da terra de Arariboia pegamos uma ponte-aérea para Buenos Aires, de olho nas aventuras dos oitentões Robert De Niro e Luis Brandoni, este último impagável como o crítico gastronômico falido da série Nada. Fica a dúvida se Brandoni é o De Niro da Argentina ou se De Niro é o Brandoni dos EUA. Seguimos com os eventos desse mês na sede da Acaso Cultural e as rápidas e rasteiras habituais.
Seguindo sempre o protocolo proposto pelo Farol Jornalismo, referência incontornável na galáxia brasileira das newsletters, os textos são assinados ao final com as iniciais do colaborador – assim, no meu caso a assinatura fica AP.
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Boa leitura!
Alexis Parrott - Editor ✅
Quando a passagem de som já é um espetáculo
Notas sobre um dia em Niterói observando o MPB4 em ação
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- 1, 2, 3, teste.
Esta é a primeira coisa que ouço ao entrar no teatro da UFF, recém-reformado e uma referência de Niterói, bem no comecinho da praia de Icaraí. Sobre o palco, posicionados lado a lado, Miltinho e seu violão, Aquiles, Dalmo e Pauleira, ao teclado. É a passagem de som do show que será apresentado ali, naquela mesma noite de final de agosto, alguns meses atrás. Enquanto ainda caminho pela ala central da plateia de mais de 400 lugares, ligam-se os microfones e, sob os auspícios de Tom Jobim, os quatro mandam ver num trecho do Samba do avião. Ao final, Miltinho denuncia: “O piano está altíssimo”. Após uma breve pausa dramática, vem o chiste para arrematar a frase: “...se continuar assim, vou me retirar.” Recebido com este pequeno aperitivo do muito que ainda estava por vir, comecei a perceber que há um “jeito MPB4 de ser”, pautado pelo bom humor, pela cumplicidade e a segurança profissional de quem sabe bem o que está fazendo.
Cumprimento Marcelo Cabanas, o produtor do grupo que me franqueou tão gentilmente a possibilidade de passar uma tarde testemunhando como trabalham e funcionam os rapazes do MPB4. Depois, faço o que havia prometido: me sento na plateia para observar e tomar notas, tão invisível quanto possível. Dizia a mim mesmo que estava ali sem expectativas – mas é óbvio que estava me enganando.
Para toda uma geração, muito antes de serem o MPB4 engajado e crítico da ditadura militar, nascido do núcleo de Niterói do CPC da UNE em 1964, os integrantes originais Magro, Ruy, Aquiles e Miltinho eram os caras que cantavam O pato; provavelmente, a mais emblemática entre todas as canções do acontecimento que foi o álbum e o programa de TV da Arca de Noé, com músicas sobre os poemas infantis de Vinicius de Morais. Eu, como qualquer criança brasileira naquele início da década de 80, mal podia imaginar que os cozinheiros desastrados correndo atrás da ave, eram na verdade um dos mais importantes grupos vocais do país.
Conversei sobre isso ao telefone com Paulo Malaguti Pauleira, o caçula da trupe, convidado a integrar o quarteto após a morte de Magro Waghabi, em 2012. Para o fundador de grupos como Céu da Boca e Arranco de Varsóvia, ser um desses 4 ases da MPB é algo que honra a sua carreira, como me confessou. E não é para menos. O MPB4 participa de uma estirpe de nomes incontornáveis da MPB compromissados com um claro projeto artístico e político, dedicando a mesma atenção para cada uma dessas duas contrapartes. Cantam lindamente para dizer com mais força; dizem com vigor porque cantam como poucos.
Segue a passagem de som e tomo um susto com o que fizeram com Que tal um samba?, da lavra mais recente de Chico Buarque: é outra música; pegaram do Chico e transformaram em algo deles, toda sincopada e completamente diversa da versão gravada pelo próprio compositor. Me dou conta que muito do repertório do grupo é construído em cima de standards da MPB, mas como negar que foram eles mesmos os responsáveis por dar o status de “clássicos” a inúmeras dessas canções? Rumo ao aniversário de 60 anos de carreira, é notável constatar que o MPB4 siga surpreendendo. Ao final da execução, dessa vez é Pauleira que dá o recado: “teve uma hora em que errou todo mundo junto. Foi genial!” Depois de risadas gerais, foram de Que tal um samba novamente – para minha alegria.
O show a ser apresentado em Niterói naquela noite é um tributo a Milton Nascimento, com um set dedicado a canções do mineiro: primeiro San Vicente, seguida de Beco do Mota (em que se destaca o violão limpo de Miltinho). A versão do grupo para Travessia é uma masterclass de harmonia vocal, com cada um entrando em diferentes trechos para construir, pouco a pouco e num crescendo, a explosão que a letra pressupõe e exige. Miltinho começa solene e passa a bola para Aquiles e Dalmo Medeiros que dividem a segunda estrofe, logo em seguida reservando para este o início do icônico refrão. O “solto a voz nas estradas” do Dalmo é capaz de arrepiar até as estalactites da Gruta de Maquiné, para ficar em uma imagem bem mineira. Todos se juntam para completar o estribilho, provando que o legado de Bituca está em ótimas mãos.
Dalmo veio engrossar o cordão do MPB4 em 2004, após a saída de Ruy Faria. Cantor e compositor (parceiro de Danilo Caymmi, entre outros), já havia integrado o Céu da Boca nos anos 1970. Dos quatro, é aquele que usa a voz sem medo para levar a emoção às últimas consequências - um contraponto importante para a melancolia sentida que só Aquiles consegue imprimir, na medida para canções como Cio da terra. Pauleira chega como a peça que faltava para completar o quebra-cabeças, trazendo mais drama e tempero para o ensemble, quer seja na voz ou com seu teclado. Terminada a passagem de som, todos se retiram para cumprir nos camarins a espera do início do show, marcado para dali a uma hora. Miltinho é o último a sair. Fica ainda sobre o palco, à meia luz, dedilhando por uns bons dez minutos seu violão – bela imagem que poderia ser fácil, fácil, uma capa de álbum.
Dono de sua história mas sempre semeando para que todos colham mais adiante, o quarteto idealizou o projeto EM FRENTE, para promover a participação de jovens artistas em seus shows. Naquela noite, a convidada era Luísa Lacerda que, além de apresentar composições autorais, se juntou aos rapazes para entoar Falando de amor (obra jobiniana cuja presença no imaginário nacional é tão forte que nem se sabe mais se é canção ou hino). Como o próprio MPB4 afirma, a iniciativa nasceu porque ninguém é totalmente independente e, mais do que nunca, necessitamos de redes. Além do projeto, o próprio repertório do espetáculo mostra isso; a começar com a homenagem a Milton e passando pela parceria longeva com Chico, mas não só. Paulinho da Viola esteve presente, com Miltinho puxando o Sinal fechado, além de Tom Jobim e Dori Caimmy. Para encerrar um show impecável, nada melhor do que a clássica Roda viva, cantada em uníssono pela plateia vibrante.
O interesse do público de Niterói e ingressos esgotados (obrigando a abertura de sessão extra da apresentação no dia seguinte) são a prova maior que aquela conversa de ninguém ser profeta na própria terra não cola com o MPB4. Em uma das falas que pontuam o espetáculo entre uma música e outra, Aquiles retribui o carinho da cidade e conta o que pensou ao tomar a barca aos 17 anos, indo embora para São Paulo na esperança de ganhar a vida cantando: “olhei para trás e vi que Niterói era muito maior do que eu”. Entre a passagem de som e o show propriamente dito, saí com a impressão de que havia assistido a dois espetáculos - e sem conseguir decidir qual dos dois foi melhor.
Quero só ver o que o futuro reserva para o quarteto, prestes a entrar na casa dos 60. De agosto para cá, seguiram com a agenda cheia, se apresentando com Kleiton e Kledir e João Bosco; abrindo portas para as novas promessas com o projeto EM FRENTE e até em Portugal estiveram, após mais de 20 anos sem pisar em solo luso. Se Aquiles está certo ao dizer que a terra natal pode ser maior que a gente, o Brasil que conhecemos hoje seria bem menor sem a música e a verdade do MPB4. (AP) ✅
Enquanto isso… no Rio de Janeiro
Em cerimônia na sede da Biblioteca Nacional, na Cinelândia, Silviano Santiago recebeu na última terça-feira, dia 14, o Prêmio Camões de 2022. Diante dos convidados que lotavam o auditório Machado de Assis e na presença da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, o professor emérito da UFF, escritor, pesquisador e crítico literário proferiu um discurso de forte teor político. Santiago relembrou que no momento em que seu nome foi escolhido para o prêmio, não havia clima digno para comemorações, face ao descaso do Governo Federal na pandemia:
Os acontecimentos ainda são recentes e queimam nossa sensibilidade fragilizada. […] Ao final do ano de 2022, o resultado das eleições trouxe alento. Trouxe de volta ao povo brasileiro a possibilidade de se concretizar no dia a dia a esperança e o sonho duma nação mais igualitária e solidária. Era urgente a reconstrução meticulosa de um país da América do Sul que esteve a perigo de desaparecer no caos.
Fez ainda um lúcido mea culpa em nome de toda sua geração, “conivente com uma das mais bem acolhidas e mais injustas civilizações implantadas no Sul pelo ocidente. […] Séculos de sofrimento exigem hoje uma reparação urgente”. Com o olhar voltado para o futuro aos 87 anos de idade, o mineiro de Formiga foi categórico na defesa da diversidade da literatura em língua portuguesa:
“Elas e eles ganham o palco pela força também secular da resistência e se representam humana e artisticamente por emoções e sentimentos originários e autênticos. […] Não me pergunto, afirmo que é chegado o momento de liberar a literatura brasileira às águas amazônicas e às atlânticas africanas e a todas as correntes diaspóricas.”
Fechou a fala dedicando o prêmio a Mario de Andrade - a quem se referiu como mestre - e defendendo o legado do Modernismo. Finda a cerimônia, acompanhado dos muitos alunos e amigos presentes, atravessou a Rio Branco e foi almoçar no Amarelinho. (AP) ✅
Crítica - Série
Nada
Uma celebração à cultura gastronômica argentina, a série encanta mas tropeça na linha de chegada
Nada (rebatizada aqui no Brasil inexplicavelmente de O Faz-nada) é mais um produto da fábrica de sucessos dos argentinos Gastón Duprat e Mariano Cohn, que se revezam na produção, direção e roteiro de obras como O cidadão ilustre (2016) e O zelador (2022). A série marca o reencontro da dupla com Luis Brandoni, de quem já haviam obtido uma inesquecível interpretação em Minha obra-prima (2018).
Brandoni faz gato e sapato na pele do irresistível Manuel Tamayo Prats, jornalista, escritor e crítico gastronômico celebrado cuja conta bancária já viu dias melhores. Anacrônico e egocêntrico, é um intelectual renascentista vivendo de aparências e dos favores de amigos abastados e de proprietários de restaurantes que fazem de tudo para ganhar uma citação favorável no jornal. Nada mais justo do que a escolha de um restaurante em La Boca, instalado em um casarão italiano dos anos 1920, como locação para sua exuberante residência.
A intolerância com a estupidez e a mediocridade o faz desconfiar do senso comum e desafiar as regras do politicamente correto. A cena em que implica com o conceito de “vacas felizes”, além de hilária pode causar gatilhos em ativistas mais empedernidos. Em outra passagem, quando instado pela amiga de longa data a não se referir à nova doméstica como “paraguaia”, o velho dândi retruca, inconformado: “mas ela é paraguaia, vou chamá-la como? De pessoa em situação paraguaia?”
A participação de Robert De Niro viralizou entre os argentinos, especialmente o trecho em que explica a diferença entre boludo e pelotudo. Seu personagem é um escritor de fama mundial que, do sofá da sala do rico apartamento em Nova York, narra as aventuras do amigo portenho. Como prometido nos teasers promocionais, a série muito se alimenta da expectativa de sua vinda a Buenos Aires para encontrar Brandoni, o que acontece apenas no último episódio. Para garantir que o trabalho coubesse em sua concorrida agenda durante a semana que passou gravando na capital argentina, não lhe exigiram nem que decorasse o texto das cenas em que assume o papel de narrador. Permanecer sentado no sofá não passa de truque para agilizar o trabalho e facilitar a leitura de suas falas no teleprompter.
Por mais que sua presença traga impacto, Nada já era uma produção charmosa e divertida por princípio, veículo perfeito para o brilhantismo de Brandoni. Foi dele a iniciativa de convidar De Niro, seu velho conhecido, por meio de uma carta escrita à mão e enviada pelo correio no final de 2021. Na carta, escreveu: "estou ansioso para finalmente podermos trabalhar juntos, além de compartilhar charlas, comidas, tragos e passeios por essa cidade única." No tempo do algoritmo, chamadas por facetime, seguidores e inteligência artificial, é bonito ver que laços afetivos reais e meios de comunicação old school ainda resistem e podem vingar.
Pensada como celebração às tradições portenhas, valorizando o lugar da carne e da comida na cultura argentina, Nada encanta, mas tropeça na linha de chegada. No último episódio, abre-se mão do humor ácido para investir no sentimentalismo barato em um desfecho além de decepcionante, inverossímil. Na tentativa de ganhar o carimbo de feel good production e uma carreira internacional mais comercial, uma das melhores séries do ano se autossabota e morre na praia, terminando em milonga de subúrbio o que poderia ter sido de ponta a ponta um tango de Gardel. (AP) ✅
Nada: série em 5 episódios, disponível no Star+
Agenda Acaso Cultural
Este mês na sede da Acaso
21 de novembro | terça-feira | 19 horas
DO QUE FALO QUANDO FALO de poesia
Entrada franca
Evento final da série com os poetas Leonardo Marona e Italo Diblasi
22 de novembro | quarta-feira | 19 horas
A questão militar: impasses e desafios
Entrada franca
Encontro com Francisco Carlos Teixeira da Silva e Adriana Marques
Francisco Carlos Teixeira da Silva | Fundador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente / UFRJ
Adriana Marques | Professora do Curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ
Curadoria: Adriana Barreto | Professora de História do Brasil da UFRRJ
Outras informações:
acasocultural@gmail.com
A sede da Acaso Cultural fica em Botafogo, no Rio de Janeiro, em um casarão restaurado do início do século XX. Em breve, contará ainda com um anexo especialmente projetado para receber eventos variados – música, teatro, palestras, simpósios, congressos. É um espaço multiartístico completo, com hall de exposições, salas de aula, espaços para coworking, um ponto de venda de livros, revistas, discos, CDs, e outros objetos de arte e cultura relacionados ao acaso.
Venha nos conhecer, estamos na Rua Vicente de Sousa 16, Botafogo, Rio
Acaso indica
Oitava Mostra de Cinema Chinês - online e gratuita
até 30 de novembro | Programação
Disponível no SPCine Play (é necessário fazer login)
Festival de Cinema Italiano - online e gratuito
Até 09 de dezembro
Filmes inéditos e clássicos
Rápidas e rasteiras
Em sua coluna no UOL, Rogério Gentile conta que o locutor Cesar Willian, a voz de Deus na novela A Terra prometida, da Rede Record, ganhou na justiça a inclusão de seu nome ao final dos capítulos, conforme regulava o contrato entre as partes. Em sua defesa, a Record afirmou que apenas o elenco principal integra os créditos, descrevendo a atuação do ator e dublador como “diminuta e coadjuvante”. Por mais irônica que possa parecer, a associação é inevitável: tanto na emissora quanto na igreja comercial de Edir ‘nada a perder’ Macedo, Deus não passa de mero coadjuvante; apenas mais um produto à venda. (AP) ✅
Em Gaza nada muda.
Gaza é a noite mais longa.
Gaza é a grande cova.
Gaza é o maior cárcere.
Em Gaza a guerra não conhece manhãs
nem noites.
Como uma prostituta sem horários nem
relógios.
Inclusive à chuva mesma inspiradora
a guerra faz perder o frescor inato.
Em Gaza o som dos trovões
e o brilho terrível dos raios
fazem a infância empalidecer.
Gaza é uma gardênia escura, da cor do carvão.
Uma flor negra, do poeta palestino Ahmad Yacoub. (Poema escrito durante o ataque militar israelense a Gaza em 2014 - tradução de Ana Aguiar Cotrim para a versão em castelhano do próprio autor.) ✅
#prontofalei
Postado pelo Silvio Meira ✅✅