Acaso cultural
#1 |Teatro: 18 anos de A descoberta das Américas | 100 anos de Italo Calvino | Almodóvar e Estranha forma de vida
Abre-alas#1
Este é um espaço aberto para o debate de ideias. Aliando informação e análise crítica, a Acaso Cultural newsletter traz a cultura e os processos da produção artística do nosso tempo para o primeiro plano. Para ir decifrando os significados do mundo, vamos de jornalismo cultural - independente e com personalidade. Sem jabá ou preconceito, o plano é esmiuçar das séries à sinfonia e do carnaval ao Prêmio Nobel, sempre mais de olho no espanto e deixando de lado a polêmica vazia. Começamos quinzenalmente e, juntos, vamos ver se a gente não chega onde quiser. Esta primeira edição traz uma conversa com Julio Adrião, ator do espetáculo teatral A Descoberta das Américas, que completou em 2023 a maioridade e está de volta aos palcos em curta temporada no Rio. Depois tem crítica do curta novo do Almodóvar e a agenda de eventos da Acaso Cultural. Notícias, indicações e comentários sobre um pouco de quase tudo fecham o cardápio. Sintam-se em casa todos aqueles que são amantes da algazarra (como assim os nominou Waly Salomão).
Seguindo o protocolo proposto pelo Farol Jornalismo, referência incontornável na galáxia brasileira das newsletters, os textos são assinados ao final com as iniciais do colaborador – assim, no meu caso a assinatura fica AP.
Boa leitura.
Alexis Parrott - Editor ✅
O guardião de uma descoberta
Uma conversa com o ator Julio Adrião, em cartaz há 18 anos com o monólogo A Descoberta das Américas.

Fui assistir novamente ao espetáculo A Descoberta das Américas durante a temporada em setembro que marcou seus 18 anos em cartaz, no Teatro Glauce Rocha, no Rio. A primeira vez foi em 2006, no Festival de Inverno de Ouro Preto, com a peça recém-estreada. Impressionou-me perceber que, após quase duas décadas, permaneciam irretocáveis o vigor e impacto não só da montagem, mas igualmente da presença em cena do ator Julio Adrião e de sua entrega ao(s) personagem(ns) que interpreta durante uma hora e vinte minutos sem pausa a cada apresentação. Até hoje foram mais de 700.
Para dar início à conversa, pergunto ao ator como um cara que é um bicho do coletivo acabou fazendo sozinho um espetáculo durante este tempo todo (além da trajetória profissional ligada a companhias teatrais, Adrião foi um dos fundadores da pioneira Coonatura, cooperativa dedicada à agricultura orgânica no Rio de Janeiro). “Não se faz nada sozinho”, ele me corrige imediatamente, já evocando o nome da grande parceira de jornada: a diretora do espetáculo, Alessandra Vannucci.
Italiana radicada no Brasil desde a década de 1990, foi Vannucci, hoje professora do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da UFRJ, que o tragou para dentro desta história no ano 2000, ao convidá-lo para dividirem a tradução do livro de Dario Fo e o processo de criação que redundaria no espetáculo. Adrião se recorda que “no quinto tratamento, ela parou e falou: o texto está bom, mas está duro. A solução é pegar a história e voltar para a boca do ator... Aí eu falei: mas eu não sei o texto.” E ela: “Mas sabe a história. Conta a história.” E ele começou a contar, ensaiando na sala de estar ou na cozinha da casa de um deles, testando e preenchendo trechos do texto que não se lembrava com ações e sons. Alguns dias depois, o desânimo bateu; ele estava achando tudo uma bagunça, mas ela se manteve firme: “isso é legal. Você está contando uma história e o corpo está falando.” Pensando em retrospecto, o pulo do gato da dupla naquele momento de gênese foi experimentar a partir do retorno à oralidade, que já era a tônica do livro de Fo. Usando uma reflexão do próprio Adrião, sobre como se pode iniciar boas coisas, a diretora teve a habilidade de “olhar para um lugar e perceber o que aquilo pode virar”. Segundo ele, mais que dirigi-lo, Vannucci nunca o deixou desistir.
Começaram a mostrar o trabalho para amigos e a encenação ia amadurecendo, graças também a diversas apresentações públicas no correr dos anos. O envolvimento com os projetos da Companhia do Público, que Adrião integrava, adiava a estreia de uma temporada oficial - efetivada apenas em 2005, com o espetáculo já sem pontas soltas, em um espaço no centro do Rio, sede compartilhada de três grupos teatrais. Cinquenta cadeiras das mais diversas foram emprestadas por um antiquário conhecido das redondezas para compor a plateia (você poderia comprar a cadeira em que havia se sentado ao fim do espetáculo) e a temporada seguia tranquila, até que o ator Sergio Britto assistiu à peça e, entusiasmado com o que viu, convocou a amiga Barbara Heliodora para fazer o mesmo. A famigerada e rigorosa crítica não poupou elogios à montagem na coluna que assinava no Globo. A partir daí, a peça virou fenômeno, com filas de mais de 100 pessoas todas as noites à porta do sobrado da Rua do Mercado. Heliodora se encantou com a técnica de Adrião, capaz de “preserva[r] a ilusão de improvisação, o fluxo da narrativa dando sempre a ideia de que foi falar de um detalhe que provocou a lembrança do seguinte”, como descreveu no jornal. Naquele ano não deu outra e o Prêmio Shell de melhor ator não poderia mesmo ir para ninguém além dele, vencendo, inclusive, a concorrência do próprio Sergio Britto.
Carioca nascido e criado em Copacabana, e tendo passado parte da juventude em Londres graças ao trabalho do pai militar da Marinha, Adrião chegou a entrar na faculdade de veterinária da UFF mas, ao descobrir o teatro, desviou o curso e passou a se guiar por outro astrolábio. Após completar a formação de ator pela CAL, Casa das Artes de Laranjeiras, vivenciou os célebres workshops e encontros promovidos pelo Odin Teatret de Eugenio Barba durante os anos 1980 em diversas incursões pelo Brasil e foi para a Europa fazer teatro. Na Itália, onde viveu por seis anos, estabeleceu contato com Sergio ‘Bustric’ Bini, ator florentino posteriormente indicado ao David di Donatello de melhor ator coadjuvante pelo trabalho em A vida é bela, de Roberto Benigni, e ainda hoje em atividade. A ideia era sorver da experiência de Bini e desenvolver um trabalho solo para se apresentar nas ruas sempre movimentadas das cidades turísticas do país.
Em um intensivão de três dias, o veterano Bini desvelou para ele a dinâmica e as minúcias daquele ofício, a começar pela convocatória – aquilo que ainda não é o espetáculo, mas já deve soar como se fosse; “para fazer o público chegar e não ir embora”. Ultrapassada esta etapa, montaram um figurino combinando peças, tamanhos e cores a partir de roupas do próprio guarda-roupa de Bini. Providenciaram uma perna de pau, compraram uma mala (escolhida na medida para caber todo o espetáculo em seu interior) e passaram ao ensaio de três dos números que o veterano havia aperfeiçoado durante a carreira e não utilizaria mais após se aposentar das ruas. Com estas ferramentas em mãos, Adrião estreou The cash and carry international show em Fiano Romano, cidadezinha a 40 km de Roma e antigo ducado da família Orsino (como em Shakespeare) durante a renascença. Ao relatar o feito a Bini por telefone, confessou que a empreitada havia sido um desastre. Do outro lado da linha, o calejado ator disparou o veredito: “Foi um desastre? Ótimo. Nunca vai poder ser pior. Continue.”
Questiono se o processo desenvolvido com Bini diz respeito à distinção que ele faz entre “direção” e “direcionamento” e Adrião confirma. É este um dos princípios em que se baseia a metodologia que desenvolveu a partir da experiência da Descoberta, o ator no solo narrativo. Para ele, é imprescindível que se crie um espaço democrático e de relação horizontal entre ator e encenador no desenvolver da criação artística. Ministrando regularmente oficinas dessa técnica, chegou à conclusão de que “o espetáculo é o método, as oficinas são a metodologia”.
Por mais que a história do italiano Johan Padan (embarcado na caravela de Colombo na viagem de “descoberta” da América) seja uma crítica contundente e irônica de Dario Fo à colonização (de povos, corpos e almas), o texto original não deixa de carregar algo do discurso do colonizador sobre os povos originários. Com a crescente influência dos estudos decoloniais e de um debate público cada vez mais presente e politizado a respeito do tema, em anos mais recentes a peça parecia estar pisando em terreno minado. Em nome da sobrevivência do espetáculo e de sua verdade, sentaram-se novamente Adrião e Vannucci, retomando todo o processo inicial para revisar trecho por trecho. Criaram o que chamaram de “janelas”, pequenas “quebras” no interior da encenação para discutir ou mesmo desabafar junto ao público sobre tudo aquilo que do ponto de vista da dupla já não mais cabia, levantando questões sobre a própria narrativa apresentada. O ator afirma estar fazendo hoje a peça que queria fazer, para o tempo presente.
Em várias entrevistas Adrião vem se declarando um guardião desse espetáculo, grato por tudo que dele adveio e ciente da responsabilidade que carrega a cada vez que ouve o terceiro sinal para mais uma apresentação. Não se deslumbra com o sucesso e prefere ignorar cantos de sereias: “se você acreditar em tudo que disserem quando estiver no alto, vai acreditar também quando disserem que você é um merda ou que não vale nada… O trabalho é mais importante do que o ator”. Quer se envolver em outros projetos, mas deseja continuar com a peça enquanto puder – auxiliado pelo remo e a yoga, que o habilitam a seguir com fôlego e físico em dia. Vista 18 anos depois, A Descoberta das Américas é resultado de uma série de encontros que foram acontecendo ao longo de sua vida: os companheiros dos grupos de teatro, Vannucci, Britto, Heliodora, Fo, e mesmo o veterano Sergio Bini; além da presença de toda uma ancestralidade brasileira e ameríndia e da celebração dessas culturas. A peça pode ser um monólogo, mas Julio Adrião sabe que nunca esteve sozinho sobre o palco. (AP) ✅
A Descoberta das Américas (do original de Dario Fo, Johan Padan a la descoverta de le Americhe) está de volta em curta temporada no Rio de Janeiro.
Com Julio Adrião | Direção de Alessandra Vannucci
DE 20 A 29 DE OUTUBRO - SEXTA A DOMINGO às 20H
no Teatro do Planetário da Gávea (rebatizado agora de Teatro Municipal Domingos de Oliveira)
Enquanto isso… em Roma
O centenário de Italo Calvino (nascido em 15 de outubro de 1923) tem sido celebrado por meio de inúmeras atividades. A vigésima segunda edição do LETTERATURE, Festival Romano de Literatura, em julho, foi totalmente dedicada à obra do italiano nascido em Cuba e diversos espetáculos de teatro e dança inspirados em seus livros tomarão os palcos da cidade até dezembro. Daqui do Brasil é possível acompanhar online durante os próximos meses o evento Alfabeto Calvino, uma série de 20 conferências realizadas nas bibliotecas públicas da rede metropolitana da capital abordando diferentes aspectos de seu trabalho multifacetado. As homenagens comprovam a perenidade e força de seu legado, concordando com a afirmativa da escritora Natalia Ginzburg ao recordar o amigo em 1986, um ano após seu precoce falecimento: “é impossível pensar que está morto”. (AP) ✅
Para assistir: canal no Youtube das Bibliotecas Públicas de Roma
Programação completa das conferências: Alfabeto Calvino – 20 incontri in 20 biblioteche
Crítica - Cinema
Estranha forma de vida
No western de Almodóvar, todo disparo de pistola é pessoal
Após se dedicar a discutir mitologias universais (como a maternidade e a família; o crime e a religião) e aquelas tipicamente espanholas (a movida madrilenha, o franquismo, a tauromaquia), Almodóvar recorre ao mito made in America essencial, o western, para contar mais uma história – ou, melhor dizendo, para contar uma mesma história mais uma vez. A começar pela revisitação do tema de Brokeback mountain (filme que desistiu de dirigir por receio dos limites que Hollywood poderia impor), Estranha forma de vida é um projeto autorreferencial.
O que rendeu delicada cena em Dor e glória passa a ser a totalidade de um filme: o reencontro de antigos amantes cuja separação, de tão radical, ultrapassa a medida temporal e precisa se estabelecer também no plano físico-geográfico. Se no longa foi necessária a travessia do Atlântico para que se revissem Federico (Leonardo Sbaraglia) e Salvador (Antonio Banderas), agora é o deserto que se impõe entre um rancheiro, um xerife e o que cada um deles deseja.
Outro paralelismo com Dor e Glória: a dor física do personagem de Banderas retorna como artifício forjado por Silva (Pedro Pascal) para justificar a visita ao povoado de Bitter Creek sem levantar as suspeitas do homem da lei local (Ethan Hawke, em um dos melhores desempenhos de sua carreira). A intenção de Silva é convencer o xerife a deixar livre seu filho acusado de assassinato e, para tanto, usa como argumento o apelo à lembrança de dois meses de paixão que viveram há décadas. Filmado com a habitual elegância aliada à violência que o gênero pressupõe, o curta condensa em pouco mais de meia dúzia de cenas a matéria-prima de que se alimenta toda a filmografia almodovariana: o desejo e suas intermitências.
Como a personagem de Victoria Abril em Ata-me!, que só reconhece seu sequestrador no momento do sexo, todo significado em Almodóvar passa pela materialidade física e pelo corpo. Sobre este aspecto, pode-se estabelecer verdadeiro compêndio a partir de sua obra: a dor nos pés de Marisa Paredes em A flor do meu segredo; o transplante de coração em Tudo sobre minha mãe, além do processo de feminização de vários personagens, como também em De salto alto, A lei do desejo, Má educação e A pele que habito; as crises de abstinência química de Cristina Sánchez em Maus hábitos; a paraplegia de Javier Bardem em Carne Trêmula e a cegueira de Lluís Homar em Abraços partidos; o contraponto entre a gravidez e os restos mortais de desaparecidos políticos da ditadura espanhola em Mães Paralelas; ou o estado de coma, a violação sexual e novamente a gravidez como chaves narrativas em Fale com ela.
Em Estranha forma de vida, todo disparo de pistola é pessoal e a luta corporal é tão íntima quanto o sexo. Ensaio-homenagem, o filme não busca evitar os clichês do gênero, mas os abraça com tamanho carinho que repete até o indevido da matriz norte-americana. Ainda que em pequenos detalhes, o México é evocado de forma exótica, expondo a dificuldade do diretor de se desvencilhar da mirada eurocêntrica sobre a ex-colônia.
Para além do tema, a opção de retornar ao formato do curta-metragem com a carreira consagrada (é o segundo em 3 anos e um próximo parece estar a caminho) prova que o manchego permanece o mesmo libertário de sempre. Na cena mais emblemática do filme, um flashback dionisíaco, os dois cowboys provam do vinho e da carne e selam seu destino. Ao estetizar o mundano, Almodóvar revela - mais uma vez - a beleza, as nuances e fragilidades da condição humana para seguir construindo, filme a filme, sua própria mitologia. (AP) ✅
Estranha forma de vida: disponível na MUBI, a partir de 20 de outubro.
Agenda Acaso Cultural
Esta semana na sede da Acaso
Quinta-feira | 19 de outubro | 19 horas
Meio-ambiente: impasses e desafios
Entrada franca
Encontro com Rafael Loyola, cientista ambiental
Doutor em Ecologia pela Unicamp com MBA Executivo em Liderança e Inovação pela FGV. É diretor executivo do Instituto Internacional para Sustentabilidade e professor da UFG.
Mediação: Beto Mesquita, engenheiro florestal
Doutor em Ciências Ambientais e Florestais pela UFRRJ, e Mestre em Conservação da Biodiversidade pelo CATIE (Costa Rica). É diretor executivo do Instituto BioAtlântica (IBio) e diretor para a Mata Atlântica e de Estratégia Terrestre da Conservação Internacional.
📝 Formulário de inscrição: https://forms.gle/vuV4YsU8AGo9svpm9
Outras informações:
acasocultural@gmail.com
A sede da Acaso Cultural fica em Botafogo, no Rio de Janeiro, em um casarão restaurado do início do século XX. Em breve, contará também com um anexo especialmente projetado para receber eventos variados – música, teatro, palestras, simpósios, congressos. É um espaço multiartístico completo, com hall de exposições, salas de aula, espaços para coworking, um ponto de venda de livros, revistas, discos, CDs, e outros objetos de arte e cultura relacionados ao acaso.
Venha nos conhecer, estamos na Rua Vicente de Sousa 16, Botafogo, Rio
Acaso indica
Ordinarius - o septeto vocal se apresenta no show Pizindim
Sexta-feira | 20 de outubro | Teatro Municipal de Niterói
de 01 a 04 de novembro | Caixa Cultural Recife
Fred Martins - no show Em trânsito
Quarta-feira | 01 de novembro | Teatro da UFF | Niterói
Quinta-feira | 02 de novembro | Feitiço das Artes | Brasília
O resgate de um clássico brasileiro do suspense psicológico: Elsa & Helena, livro de Gastão Cruls - uma campanha de financiamento coletivo da Acaso Cultural. Conheça mais sobre obra e autor e participe do projeto. ✅
Rápidas e rasteiras
Apelando para ligações profundas entre o universo ferroviário, o imaginário de Minas Gerais e o próprio cancioneiro, Milton Nascimento negociou sua imagem para a Estrela vender trenzinhos de ferro. Fica difícil negar que o espírito romântico de ferrovias e estações mineiras perdeu-se há muito no tempo. Pelas Gerais de hoje os únicos trens a circular massivamente são aqueles carregados do minério extraído de suas alterosas que, em breve, também não passarão de saudosa lembrança. (AP) ✅
Após alguns passantes manifestarem insatisfação com o teor político da exposição ainda em montagem do artista plástico Fael, a administração do Mercadão de Madureira, no Rio, decidiu pelo cancelamento sumário do evento em suas dependências. O nome disso é censura e trai a vocação daquela Madureira democrática e combativa cantada por Arlindo Cruz e Moacyr Luz. A denúncia é do jornalista e autor Adalberto Neto, que abriu espaço em suas redes para exibir os quadros censurados. (AP) ✅
#prontofalei
postado por Vanderbilt University Libraries ✅✅