Acaso Cultural
#2 | Hanif Kureishi | Dia Sem Pressa 2023 | Scorsese e Assassinos da lua das flores
Abre-alas#2
Ainda no rastro do último domingo, dia escolhido pela Unesco para a celebração do livro, esta segunda edição da Acaso Cultural Newsletter traz um artigo sobre o escritor Hanif Kureishi e sua delicada condição de saúde, após um sério acidente no final de 2022. Durante todo o ano, o autor anglo-paquistanês de O Buda do subúrbio vem compartilhando via internet o novo cotidiano vivido entre a mesa de cirurgia e quartos de hospital. Este “diário de um ano ruim” (para citar Coetzee) encontrou ressonância e inaugurou novas conexões entre escritor e leitores. Depois, seguimos com a resenha crítica de Assassinos da lua das flores, porque nada mais apropriado do que discutir o novo filme de Martin Scorsese no momento em que a palavra genocídio insiste em se fazer presente. Pensado inicialmente como um thriller policial sobre a gênese do FBI e veículo para Leonardo DiCaprio, o resultado que chegou às telas passou longe disso. Durante a longa preparação que precedeu as filmagens, ao perceber que não era essa a história que precisava ser contada, o cineasta mudou o curso de ação e construiu uma obra engajada politicamente em defesa da questão indígena. Fechamos com uma homenagem à memória de Guilherme Mansur, poeta e tipógrafo, por quem os sinos de Ouro Preto nunca deixarão de dobrar.
Seguindo sempre o protocolo proposto pelo Farol Jornalismo, referência incontornável na galáxia brasileira das newsletters, os textos são assinados ao final com as iniciais do colaborador – assim, no meu caso a assinatura fica AP.
E vamos ver se juntos a gente não chega onde quiser.
Boa leitura.
Alexis Parrott - Editor ✅
O diário de um escritor sem mãos
Após grave acidente, o autor britânico Hanif Kureishi compartilha online o dia a dia do calvário de uma lenta recuperação

Era 26 de dezembro de 2022 e, após um passeio pela Villa Borghese, o escritor inglês Hanif Kureishi assistia pela TV a uma partida de futebol na casa de sua companheira Isabella, em Roma. Não se sentindo bem por conta de uma diverticulite mal curada que ainda lhe afligia, ao se levantar do sofá, desfaleceu. Acordou mergulhado em uma poça de sangue, rodeado por “objetos” que demorou a reconhecer: eram as próprias mãos. Se deu conta da impossibilidade de movimentá-las e achou que iria morrer naquele instante. Como consequência da queda, uma lesão na coluna o impede de usar braços e pernas desde então. O autor de livros marcantes como O Buda do subúrbio, O dom de Gabriel e do roteiro de Minha adorável lavanderia (para o filme dirigido em 1985 por Stephen Frears), vive a assustadora perspectiva de, talvez, nunca mais andar ou sequer segurar um lápis para escrever um bilhete.
Quase um ano depois, Kureishi continua vivo e dividir online a experiência de sua lenta recuperação (primeiro em hospitais romanos e hoje já de volta a Londres, mas ainda internado) tem sido misto de alento e terapia. Dita as entradas semanais do diário para o filho Carlo, o primeiro a reconhecer que há anos o pai não escrevia tanto e com tal regularidade. Além de comentários sobre a cirurgia e a jornada de exames e tratamentos fisioterapêuticos, os posts versam sobre suas memórias e o ofício da escrita entremeados por reflexões e alguns ensaios (sobre arte e cultura, amizade e família, vida e morte, fé e identidade) divididos entre o perfil do Twitter e a newsletter no Substack, The Kureishi Chronicles.
“[...] Antes do meu acidente, ninguém me tocava; claro, Isabella, de tempos em tempos, mas fora ela, ninguém. Agora eu sou virado, rolado, espetado e cutucado constantemente, e quando digo constantemente, quero dizer exatamente isso – todo dia e toda noite. Mais estranhos tocaram em meu corpo no último mês do que durante toda minha vida. Eu me acostumei com isso. Instrumentos nos meus ouvidos, dedos na minha bunda, esponjas em torno dos meus genitais, debaixo dos braços e nas costas, luzes nos meus olhos. Tudo, por todo lugar, o tempo todo. Como passei de um homem privado a um pedaço público de carne?” (excerto de My body, postado em 16 de setembro)
Capaz de construir notáveis articulações, Kureishi pode se utilizar de um filme de Fassbinder para discutir a questão migratória na Europa, a fatwa infligida ao amigo Salman Rushdie, a lembrança da casa paterna e o impacto da ascendência paquistanesa em seus anos de formação na periferia do sul de Londres. Seja recordando a juventude de autor teatral aspirante, quando observava os hábitos banais de Samuel Beckett, sentado à mesa de um pub (“Percebi que se alguma moça se aproximava com uma pilha de seus livros, Sam se animava e os autografava com satisfação”); ou rememorando a primeira visita infrutífera a uma agente literária (“Muitos anos mais tarde, quando ela sofria de demência, seu escritório pegou fogo. Ela disse ao ator Simon Callow que havia sido um ato de vingança e que eu era o responsável”), o autor de 68 anos fala de si e de sua geração de maneira aberta, porém, sem nostalgia. Compreende que se o passado não for usado como dispositivo para pensar o presente, não faz sentido voltar a ele.
Apesar das crises de depressão que o acometem sem trégua, tem conseguido garimpar pequenos e possíveis prazeres. Como a visita matinal de um médico italiano e as conversas entabuladas sobre o ordinário e o curioso da vida de cada um deles, em especial a vez em que o doutor foi levado à Calábria para operar um capo mafioso (“estar paralisado é uma ótima maneira de conhecer gente nova”); ou o prazer de descobrir o gosto de um refrigerante alaranjado na cantina do Policlínico de Roma, na companhia dos amigos Senhorita S. e Maestro – como ele, cadeirantes em recuperação de traumas físicos. A maneira como assina cada post revela o estado de espírito: “seu amoroso escritor”, nos dias melhores; um íntimo “Hanif”, mais regular nos últimos meses; e “Hanif sem mãos”, nos dias mais sombrios.
A narrativa do calvário hospitalar conseguiu arregimentar uma nova base de admiradores, verdadeiros “hanifers”, misturados aos antigos leitores. Por vários motivos, gente ao redor de todo o mundo vem se deixando tocar pela saga do escritor, registrando nos comentários dos posts desejos de recuperação, palavras de incentivo e carinho, além de declarações de agradecimento por lições aprendidas com a experiência compartilhada.
“[...] Fiz um novo amigo, Jon, que está em uma baia no corredor ao lado do meu, dividida com três outras pessoas. [...] Foi alentador saber que Jon tem os mesmos pensamentos obsessivos que eu. Por que isso aconteceu comigo? Por que fui o escolhido para esse infortúnio quando outros estão andando pela rua e levando uma vida boa? O que eu faria se pudesse voltar no tempo? E por que eu não soube apreciar melhor quando podia usar minhas mãos e pernas? Etc. É tão chato. Não me espanta que ele queira morrer. Mas o blog [que Jon também passou a escrever] o anima. Como eu, ele sente que está se comunicando com alguém. E se você aguentou ler até aqui, então, é você a pessoa para quem faço isso. Obrigado por estar aí.” (excerto de The day room, postado em 14 de outubro)
Ao contrário do que possa parecer, o diário do escritor sem mãos não se assemelha em nada às indecorosas publicações de autoajuda - e traz ainda a vantagem de não deixar no cérebro o retrogosto amargo de tempo desperdiçado ao final da leitura. Por não prometer coisa alguma, nada há que cumprir além da oferta de breves instantâneos da intimidade de um grande artista passando por uma provação extrema. O drama humano e a sinceridade cortante, aliados ao talento de sempre, potencializam o poder de conexão que já emanava de sua escrita. Ele rejeitaria a ideia, mas é inevitável especular se, à imagem do pai do protagonista de seu livro mais célebre, não estaria o próprio Kureishi se tornando um novo tipo de Buda do subúrbio. (AP) ✅
Mais trechos selecionados do diário de Hanif Kureishi
“[...] Pelo menos, com Isabella eu tenho reconhecimento. Eu preciso acreditar que ela sabe quem sou eu e do que estou sofrendo; eu preciso acreditar que sei o mesmo sobre ela. Ela me vê; ela me conhece. Eu a vejo; eu a conheço. [...] Esta ideia de reconhecimento mútuo, de compreensão compartilhada – um tipo de espelhamento – é parte da razão pela qual escrevo este blog, e parte da razão de eu ter começado a escrever, para início de conversa. Lembro de mim como adolescente querendo escrever histórias e romances porque pensava que alguém lá fora poderia me reconhecer e entender o que eu estava passando. Ainda que me agarre à ideia de que histórias são fundamentalmente entretenimento, não as vejo apenas como uma espécie de diversão superior, mas como uma tentativa de comunicar algo essencial sobre o sofrimento.” (excerto de The world is a hospital, postado em 2 de abril)
“[...] Mas é de manhã, quando acordo e começo a tomar consciência de mim mesmo, um pouco como Gregor Samsa no início da Metamorfose de Kafka, me dou conta de que o que aconteceu comigo é real. [...] Como é estar como estou, devem tentar imaginar; uma tartaruga, virada de costas para o chão, balançando no ar em desespero seus pequenos braços e pernas, implorando para que a desvirem. Então, me tornei um ditador, um ditador relutante. Sou inteiramente dependente do amor e generosidade dos outros e, da vulnerabilidade da minha posição, só posso imaginar se não os estou pressionando demais. Mas não tenho escolha. Tenho que pedir pelas coisas, porém, não faço isso baseado em um sentimento de onipotência, mas de fragilidade. Se estou com ódio, e geralmente estou, é devido à minha incapacidade.” (excerto de The reluctant dictator, postado em 23 de setembro)
“[...] A primeira vez em que me dei conta de que possuía uma identidade, e da utilidade disso, foi quando decidi, durante a adolescência que queria ser um escritor. Comecei a chamar a mim mesmo, na minha cabeça, de escritor. Ninguém mais sabia que eu era um escritor porque ainda não havia escrito muito e ninguém ainda havia lido o que eu escrevia, graças a Deus. Mas a noção de que eu poderia vestir essa identidade como se fosse uma roupa nova ou uma armadura realmente me ajudou muito. Na infância e na juventude, sofri abuso racial; na escola e nas ruas, em alguns momentos eu era conhecido como ‘Paki’. Chamar a mim mesmo de escritor era uma autodesignação que me protegia.” (excerto de Paki/Writer/Cripple, postado em 28 de outubro)
The Kureishi Chronicles - a newsletter do autor
Enquanto isso… em São Paulo
Acontece em 11 de novembro a sexta edição do DIA SEM PRESSA, festival pioneiro da Cultura Slow no país. Em torno da ideia de desaceleração, o evento reúne pessoas, grupos, projetos, organizações e empresas que valorizam e empreendem no mundo uma vida mais afetiva, humana e artesanal; com mais convivência e cuidado com as relações e pessoas. Durante todo o dia, uma série de atividades no SESC Pinheiros irá celebrar a vida simples, o consumo consciente, a economia criativa e a solidariedade. Uma iniciativa do Instituto Desacelera em parceria com o SESC-SP. ✅
Programação completa do DIA SEM PRESSA 2023
Crítica - Cinema
Assassinos da lua das flores
Scorsese chega aos 80 anos exercitando como nunca a capacidade de escuta
Explosivo. Não há outro adjetivo para descrever o mais recente filme de Martin Scorsese, uma corajosa denúncia do genocídio dos povos originários desde a chegada dos colonizadores à América. Sob o recorte do drama real dos Osage de Oklahoma do início do século XX, prósperos graças ao petróleo abundante em suas terras, o cineasta constrói uma narrativa de cobiça e morte, reiterando a tese principal de sua obra: a violência como elemento formador do DNA dos Estados Unidos.
Mesmo com o cuidado de se cercar de inúmeros membros da nação Osage como consultores, atores e parte da equipe por trás das câmeras, Scorsese não evitou críticas defendendo que são os indígenas os mais indicados a contar suas próprias histórias. O filme já valeria apenas por trazer às manchetes e trend topics um debate tão ressonante sobre a questão indígena, bem como de suas representações na cultura popular. (A discussão no Brasil sobre o marco temporal, que vem desmascarando a elite política ao colocar Congresso e STF em campos opostos, é prova maior de que políticas de reparação aos povos originários, embora justas, estão longe de ser um consenso.)
Além do caráter assumido de manifesto político, Assassinos da lua das flores traz também a plenitude estética de um autor maduro, dono das ferramentas e possibilidades de seu ofício. A abertura do filme, operística, contrapõe tradição e progresso no embalo de uma trilha composta sobre variadas referências musicais dos EUA, de resultado ameaçador; uma introdução ideal para estabelecer o ritmo de toda infâmia que virá em seguida.
Já é lugar comum o uso de imagens antigas para contextualizar historicamente um filme de época, mas o diretor dá um passo além ao recusar o óbvio e reencenar com atores e minuciosa reconstituição visual os cinejornais mudos daqueles anos 1920. O cinema era ainda uma tecnologia recém-chegada e as pessoas posavam para a câmera como se fossem tirar uma foto, denotando a pouca familiaridade e algo entre o solene e o desconforto diante do aparato. Se Hugo Cabret trazia o inesquecível making-off de um dia de trabalho de Méliès em seu estúdio de Montreuil, a homenagem agora é aos pioneiros do documentário - berço indiscutível do cinema.
O título remete à lua cheia de maio e seu efeito sobre as planícies de Oklahoma, quando plantas mais altas se impõem e fazem murchar as flores mais delicadas. Para o conto de violência moral de A época da inocência, de 1993, Scorsese já havia baseado toda a atmosfera do filme na simbologia das flores. Desde os créditos iniciais (realizados por Saul e Elaine Bass), são elas a comentar cena a cena o estado de espírito dos personagens – com protagonismo indiscutível da rosa mas, sobretudo, de seus espinhos. Do White rose de D.W. Griffith, passando pela American beauty rose de Sinatra, até o Rose Garden da Casa Branca, a rosa figura no imaginário estadunidense como um emblema nacionalista, convertido oficialmente em um dos símbolos do país durante os anos Reagan.
Na companhia de colaboradores constantes (como De Niro, DiCaprio, a montadora Thelma Schoonmaker e o fotógrafo Rodrigo Prieto) e contando com a força hipnótica da atriz Lily Gladstone (franca favorita na corrida do Oscar), Scorsese chega aos 80 anos exercitando como nunca a capacidade de escuta para fazer um de seus melhores e mais importantes filmes. Na cena final, Assassinos da lua das flores propõe um novo caminho: a rosa americana, já despetalada, renasce em uma mandala indígena, apontando uma saída possível na direção de dias melhores. (AP) ✅
Assassinos da lua das flores: em cartaz nos cinemas.
Agenda Acaso Cultural
09 de novembro | quinta-feira | 19 horas
A questão agrária: impasses e desafios
Entrada franca
Encontro com Paulo Alentejano e Marina do MST
Paulo Alentejano - Prof. do Depto. de Geografia da UERJ e Coordenador do Grupo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Geografia Agrária (GeoAgrária)
Marina do MST - Deputada Estadual (PT-RJ), Dirigente do MST, assistente social e mestra em Geografia
Curadoria: Vera Lunardi - Diretora Administrativa da Cooperativa de Trabalho, Consultoria, Projetos e Serviços em Sustentabilidade (CEDRO) e Profa. do Depto. de Ciências Sociais/ICHS/UFRRJ
Outras informações:
acasocultural@gmail.com
A sede da Acaso Cultural fica em Botafogo, no Rio de Janeiro, em um casarão restaurado do início do século XX. Em breve, contará também com um anexo especialmente projetado para receber eventos variados – música, teatro, palestras, simpósios, congressos. É um espaço multiartístico completo, com hall de exposições, salas de aula, espaços para coworking, um ponto de venda de livros, revistas, discos, CDs, e outros objetos de arte e cultura relacionados ao acaso.
Venha nos conhecer, estamos na Rua Vicente de Sousa 16, Botafogo, Rio
Acaso indica
PELE - Documentário de Marcos Pimentel
Aracaju | Cinema Vitória | sex às 15h
Brasília | Cine Brasília | sex, sab e dom às 16h
Fortaleza | Cinema do Dragão | qui às 17:50h; sex às 17:10; dom e qua às 17:50
Goiânia | Cine Cultura | qui às 15:30h; ter e qua às 14h
Manaus | Casarão de Ideias | qui às 19:30h; sab às 16h; dom às 19:40h
Porto Alegre | Cine Bancários | 15h (exceto seg)
Ribeirão Preto | Casa Belas Artes | 16h
Salvador | Saladearte CineMAM | 15:40h
Rápidas e rasteiras
A morte de Danilo Santos de Miranda, diretor do SESC-SP por quarenta anos, representa duro golpe para a cultura brasileira. Em palestra proferida em 2010, ouvi dele a seguinte reflexão, válida ainda hoje e sempre: “A cultura tem o papel de se opor à barbárie, a tudo aquilo que é ‘normal’, com uma obrigação humanitária. [...] Em um mundo como o nosso em que o compromisso com as corporações é, via de regra, maior do que com o interesse público... o jornalismo cultural deve enxergar um pouco além do que fazem o mercado, as instituições e o poder público.” (AP) ✅
Saiu pela Rocco em agosto Longas lâminas, incursão político-noir de Irwine Welsh, autor do icônico Trainspotting. É o segundo volume de uma trilogia centrada nas peripécias autodestrutivas do detetive da polícia de Edimburgo, Ray Lennox. A jornada existencial do personagem virou a série Crime no canal de streaming inglês Britbox, em 2021. A segunda temporada estreou no final de setembro, trazendo novamente Dougray Scott à frente de um elenco que chega a dar raiva de tão bom. Enquanto somos bombardeados com uma enxurrada de produções que nada acrescentam ou discutem, é necessário cobrar dos responsáveis pela programação das plataformas nacionais o porquê de tal joia ainda permanecer inédita por aqui. (AP) ✅
#prontofalei
Postado pelo Lucio Agra
Poema pregado à porta do quarto hospitalar em que o poeta Guilherme Mansur (1958-2023) passou os últimos meses de vida. Dele, permanecem a singular e belíssima obra e a esperança de quem sempre enxergou mais longe. (AP) ✅✅