Acaso Cultural
#6 | Oscar 2024 | Dia internacional da mulher em Gaza | Nova campanha de financiamento da Editora da Acaso
Abre-alas#6
A primeira edição do ano de nossa newsletter se rende ao quase centenário Oscar, com todo o seu glamour, fascínio e contradições. Aos vencedores, alegria, alegria - como diria Caetano; e aos perdedores vale lembrar a frase de Geraldo Vandré: “a vida não se resume em festivais”. Além da promoção dos produtos comerciais de uma indústria, a premiação da Academia reafirma a cada ano a força do cinema enquanto fenômeno cultural e alimenta suas mitologias. Com o olhar crítico acionado, mas sem perder a empolgação do fã, assistir à cerimônia pode ser um ritual tão ou mais emocionante do que uma final de campeonato de futebol. Do favorito Oppenheimer, passando pela boneca Barbie, até o cão Messi (de Anatomia de uma queda), novos heróis foram introduzidos no Olimpo hollywoodiano do cinema comercial; um reino onde também cabem, de quando em quando, filmes estética e politicamente mais ambiciosos.
Nesta edição, você confere ainda a programação completa das atividades de março na sede da ACASO CULTURAL, com eventos e lançamentos de livros.
E vamos ver se juntos a gente não chega onde quiser.
(Os textos são assinados ao final com as iniciais do colaborador – assim, no meu caso a assinatura fica AP.)
Boa leitura!
Alexis Parrott - Editor ✅
Um Oscar para o ano que vivemos em perigo
Se os novos rumos tomados pela Academia são uma mobilização legítima ou mera jogada de relações públicas, só o tempo irá dizer.
Além das águas fechando o verão, o mês de março é também responsável por trazer o célebre ritual de revelação dos vencedores (e perdedores) da corrida anual do Oscar. Copiado por dez entre dez cerimônias de premiação artística ao redor do planeta, o suspense analógico daquele abrir de envelopes segue imbatível - mesmo na era digital em que vivemos. Criado pelo poderoso produtor da Metro Louis B. Mayer e instituído pela Academia estadunidense de Artes e Ciências Cinematográficas em 1929, o prêmio caminha para o centenário ainda cercado de prestígio, apesar das inúmeras escorregadas ideológicas e injustiças cometidas ao longo de sua história.
A verdade é que o pouco mais de 30 centímetros e quase quatro quilos da estatueta dourada de um senhor esguio, nu e careca sobre um rolo de filme não corresponde ao tamanho do mito que o Oscar representa no imaginário do planeta. De todas as premiações que seguem o modelo de votação entre os membros de uma academia cinematográfica nacional (como o Goya espanhol, o BAFTA inglês, o César francês e o David di Donatello italiano) o estadunidense é, de longe, o de maior apelo internacional e o que mais garante retorno comercial para seus vencedores. Ainda que apenas sucessos de bilheteria já consolidados sejam geralmente indicados à categoria de melhor filme, os números não mentem. No contexto atual dominado pelo streaming, Parasita, do sul-coreano Bong Joon-ho, teve um aumento de 18% na renda após garantir lugar entre os indicados a melhor filme em 2020; e Green book: o guia, amealhou metade dos 85 milhões de dólares conquistados domesticamente após o frisson causado por suas indicações.
Para compreender sua amplitude, o Oscar deve ser analisado sob três aspectos fundamentais. Primeiro, a relevância comercial, já que um filme oscarizado sempre contará com um impulso de bilheteria; segundo, a aura de reconhecimento técnico e artístico, justificado por um colégio eleitoral composto pelos pares profissionais de cada categoria; e, terceiro, a cerimônia de premiação em si, produzida como um programa de televisão transmitido ao vivo mundialmente. Cada uma dessas dimensões se alimenta das outras para manter em equilíbrio o tripé que sustenta o prêmio.
Em anos mais próximos, um quarto elemento veio se juntar a estes três pilares: a perspectiva política da diversidade. Pressionada pela opinião pública, a Academia abraçou a estratégia de ampliar a pluralidade de seus membros votantes, convidando inúmeros técnicos e artistas de outros países e de minorias étnico-raciais para integrar seus quadros. Para analisar esta mudança de rumo, vale dar uma olhada no que vem acontecendo com a categoria de direção. Em quase um século, a láurea foi concedida apenas 3 vezes a mulheres, resultado de míseras 8 indicações.
Sob o recorte do gênero, se atentarmos para as datas das duas últimas vitórias (Chloe Zhao, por Nomadland em 2021; e Jane Campion, por Ataque dos cães, em 2022), podemos aferir o quão recente é este movimento. Reconhecer o talento de um nome como Campion apenas agora significa um desagravo, mas também uma ação de contenção de danos; a exemplo da maneira como atrizes e atores negros passaram a ser encarados. Se, historicamente, ocupavam um espaço de cota, recebem hoje outro tratamento, pelo menos no número crescente de indicações. É como se o carequinha dourado tivesse assumido ares de Lázaro, voltando de um longo coma letárgico para reconquistar o respeito perdido após décadas de segregação racial e de gênero. Se mobilização legítima ou mera jogada de relações públicas, só o tempo irá dizer.
“And the Oscar goes to…”
Neste clima, o Teatro Dolby, em Los Angeles, serviu de palco na noite do último domingo para mais uma cerimônia do Oscar, conduzida pelo humorista e host de talk show Jimmy Kimmel. Apresentada por Ana Furtado, com comentários da jornalista Aline Diniz e da atriz Andréia Horta, a transmissão brasileira nos brindou com graves problemas técnicos de queda de sinal (o prêmio de animação sequer foi exibido), além de trazer um conteúdo questionável, com pouca informação e algo entre o cafona, o laudatório e algumas manifestações político-melodramáticas desnecessárias.
Como previsto, a noite consagrou Oppenheimer com 7 estatuetas (porém, longe ainda das 11 de Bem-Hur, Titanic e da última parte da trilogia O Senhor dos anéis). Como não conceder o prêmio a uma obra que purga a culpa coletiva do povo estadunidense por ter criado e lançado a bomba atômica sobre o Japão? Os outros 9 indicados ficaram a ver nêutrons no rastro de Oppenheimer. O conto de fadas gótico do grego Yorgos Lanthimos e o feminismo da boneca da Mattel não poderiam mesmo ser páreo para uma elegia ao mito do self-made man. Superação e vitória são ingredientes básicos do suco supremacista que ainda hoje mantém de pé a fleuma dos Estados Unidos e empresta sobrevida à falácia do Sonho Americano. Apesar disso, o filme é bom, com narrativa ardilosamente construída por Christopher Nolan, transformando o que poderia ser apenas mais uma biopic (a exemplo do que Bradley Cooper fez com Bernstein em Maestro) em grave drama psicológico e bem-vinda discussão sobre a ética.
Entre os outros concorrentes, Os rejeitados, conto natalino agridoce de Alexander Payne, não levaria mesmo, no que se irmanava a Ficção americana. Este último foi agraciado com o prêmio de roteiro adaptado, retomando o hábito da Academia de usar as categorias de roteiro para reconhecer novos talentos. O afã descalibrado visto no ano passado com a premiação excessiva ao sofrível Tudo em todo lugar ao mesmo tempo não deve se repetir. Vidas passadas, atualização adulta e com substância do desgastado gênero da comédia romântica, ficou mesmo esquecido frente a contendores tão superlativos. Não era para ganhar, mas merecia mais reconhecimento.
Infelizmente, o título de maior perdedor foi para Assassinos da lua das flores, que saiu de mãos abanando, apesar das dez indicações. A maior ousadia de Scorsese em anos e, provavelmente, o filme mais político de toda sua obra, a trágica saga dos Osage de Oklahoma parece ter envelhecido rapidamente. O filme gerou muita controvérsia e a questão identitária se impôs. O bombardeio dos detratores e mesmo o fogo amigo de indígenas que prestaram consultoria ao filme colocaram na parede o velho cineasta, questionando se não seriam os Osage os mais apropriados a contar sua própria história. A discussão eclipsou as enormes qualidades do filme, assim como a magnífica atuação de Robert DeNiro e pode até ter custado a estatueta a Lily Gladstone, dada como certa até bem pouco tempo.
Nas categorias de atuação, Robert Downey Jr. teve o trabalho reconhecido pelo retrato ficcional de Lewis Strauss, pintado vilanescamente pelo diretor Nolan como um novo Salieri, nêmesis do Mozart da fissão nuclear, Dr, Robert Oppenheimer. Provou-se mais uma vez que a inveja compensa, pelo menos no cinema. A nuançada performance de Cillian Murphy tirou o doce da boca de Paul Giamatti – que já deveria ter ganhado pelo menos desde Anti-herói americano, em 2003. O placar final ficou assim: Prometeu, 1; loser, zero.
A disputa acirrada entre Emma Stone (Pobres criaturas) e Lily Gladstone (Assassinos da lua das flores) terminou com a vitória da metáfora fantasiosa sobre a tragédia da vida real. O compromisso de Stone com a personagem Bella Baxter, espécie de versão feminina do monstro de Frankenstein, levou às suas mãos o segundo Oscar da carreira, suplantando a gravidade da interpretação de Gladstone, o maior trunfo do filme de Scorsese ao lado do vilão de DeNiro. Carey Mulligan – a melhor coisa em Maestro – foi a verdadeira injustiçada da categoria porque já sabia que não tinha chances, apesar do trabalho irretocável. No setor coadjuvante, o mesmo pode ser dito sobre Emily Blunt, em Oppenheimer (aparentemente, foi-se o tempo em que se premiavam atrizes interpretando as esposas dos protagonistas, como Jennifer Connely em Uma mente brilhante; ou Marcia Gay Harden, em Pollock). O prêmio foi abocanhado, sem surpresas, por Da’Vine Joy Randolph, a cozinheira enlutada da escola de Os rejeitados.
Um bonde chamado política
O início da transmissão atrasou em 6 minutos devido à grande massa de manifestantes que bloqueavam as ruas próximas ao endereço da premiação, com cartazes exibindo frases como: “sem prêmios durante o genocídio”. Apesar do evento ser dedicado ao cinema, os pontos mais altos da cerimônia foram igualmente de teor político. Primeiro, com o agradecimento público aos sindicatos de várias categorias de trabalhadores que apoiaram as associações de classe dos atores e roteiristas durante a greve de 2023. O apresentador Kimmel afirmou que nas próximas lutas dessas categorias os artistas estariam junto, pressionando as organizações patronais. Depois, o discurso do diretor britânico Jonathan Glazer, vencedor de filme internacional com Zona de interesse, longa sobre a vida familiar do diretor nazista do campo de concentração de Auschwitz, durante a segunda guerra. Com as mãos trêmulas, ele leu sobre o palco do Dolby:
Todas as nossas escolhas foram feitas para refletir e nos confrontar no presente. Não para dizer: ‘veja o que eles fizeram naquela época’, mas sim: ‘veja o que fazemos agora’. Nosso filme mostra para onde nos conduz a desumanização, em sua pior forma. Ela moldou todo o nosso passado e o presente. Neste momento, nos levantamos como homens que recusam o sequestro de seu judaísmo e do holocausto por uma ocupação que levou o conflito a tantos inocentes. Quer sejam as vítimas do 7 de outubro em Israel ou do ataque contínuo a Gaza, [são] todos vítimas dessa desumanização. Como podemos resistir?
Sintomaticamente, o trecho do discurso citando o 7 de outubro foi interrompido por palmas da plateia, enquanto a equiparação das vítimas israelenses com os palestinos sitiados e bombardeados em Gaza foi recebida com silêncio. Mais econômico nas palavras, mas na mesma toada, Cillian Murphy dedicou o seu prêmio “aos pacificadores” e o ucraniano 20 dias em Mariupol foi a escolha óbvia para vencer a categoria de documentário - um manifesto de apoio ao “servo do povo” Zelensky.
Quase ao término da cerimônia, Jimmy Kimmel leu e comentou uma postagem de Donald Trump, publicada em rede social naquela mesma noite, desqualificando o seu trabalho como apresentador do Oscar. Diante dos maus bofes do ex-presidente, o humorista disparou: “Obrigado por assistir. Já não passou da hora de você estar na cadeia?” (AP) ✅
Enquanto isso… em Gaza
Ainda ecoando o Dia Internacional da Mulher, as notícias que chegam da Palestina são as piores possíveis. Com uma média diária de 63 assassinatos (não há outra palavra para definir o que o Estado comandado por Netanyahu está cometendo), estima-se que cerca de 9 mil mulheres foram mortas em Gaza desde o início do ataque israelense em represália aos atos terroristas do Hamas, em 07 de outubro do ano passado. Sem um cessar-fogo imediato, a tendência desses tristes números é continuar aumentando. Segundo o porta-voz do Ministério da Saúde de Gaza, Dr. Ashraf al-Qudra, mais de 60 mil gestantes sobrevivem hoje sob risco de desnutrição e desidratação, além da falta adequada de atenção médica. (AP)✅
Agenda Acaso Cultural
Este mês na sede da Acaso
LANÇAMENTOS | Livros
14 de março | quinta-feira | 19 horas
A trajetória dos CASTRATI na corte luso-brasileira (1752-1822)
de Kristina Augustin
Para manter o padrão musical e luxo nas cerimônias de sua Capela Real, D. João VI determinou a vinda dos castrati para o Brasil. Para esses cantores, o Rio de Janeiro foi o último reduto de acolhimento de uma arte vocal que já estava em franca decadência na Europa. O livro, baseado na tese de doutorado da autora na Universidade de Aveiro, registra o percurso histórico desses cantores a partir de documentação histórica inédita (Editora Dialética).
28 de março | quinta-feira | 19 horas
Elsa & Helena
de Gastão Cruls, com prefácio de Auterives Maciel Jr.
UM SUSPENSE PSICOLÓGICO NO FLORESCER DA PSIQUIATRIA MODERNA. No final da década de 1920, a vida conjugal de Elsa e Alexandre é aterrorizada pela presença sombria de Helena. Partindo de um misto de narrativa fantástica e psicanálise, o livro promove uma discussão atemporal sobre moralismo, performances sociais, sexualidade, casamento e saúde psíquica (Editora Acaso Cultural).
EVENTOS
23 de março | sábado | 19 às 22 horas
DO QUE FALO QUANDO FALO de poesia (Ano II)
Entrada franca
Com a presença das poetas Beatriz Malcher (RJ, autora de Sophia Loren não liga pro futuro [2023], entre outros) e Gabriela Perigo (RJ, autora de A saga [2022], entre outros).
(Curadoria de Daniel Massa e Gabriel González)
27 de março | quarta-feira | 19 às 22 horas
ENCONTRO DE CORAIS
Entrada franca
Apresentação dos corais Diversus, Grupo Trevo e Gemas Cariocas, com convidados.
SABERES E FAZERES
Curso de Bordado
com Maria Fernanda Carvalho
Todas as terças-feiras | 10 às 12:30 horas
Aulas avulsas ou Pacote mensal
Outras informações:
acasocultural@gmail.com
A sede da Acaso Cultural fica em Botafogo, no Rio de Janeiro, em um casarão restaurado do início do século XX. Em breve, contará ainda com um anexo especialmente projetado para receber eventos variados – música, teatro, palestras, simpósios, congressos. É um espaço multiartístico completo, com hall de exposições, salas de aula, espaços para coworking, um ponto de venda de livros, revistas, discos, CDs, e outros objetos de arte e cultura relacionados ao acaso.
Venha nos conhecer, estamos na Rua Vicente de Sousa 16, Botafogo, Rio
Campanha de financiamento coletivo Acaso
do premiado autor mineiro Emerson Maia, uma dança macabra para nossos tempos.
Um idoso encontrado morto em seu apartamento; irmãos que assassinam irmãos e pais que matam por suas filhas; sangue derramado por vingança, sangue derramado por maldição, sangue derramado por acaso… um jogo de fragmentos para narrar a constante multiplicação dos (esquivos) sentidos sobre a Morte.
Nas ladeiras de Araribá, raiava outra manhã suorenta de um agosto que nunca chegava ao fim. Começava, pois bem, a cair uma chuva miúda, dessas, assim-assim, que não parecem que irão durar muito tempo, mas que são capazes de ensopar as roupas e, toda vez que surgem mancomunadas com ventanias endiabradas, excepcionalmente aptas a levar pelos ares revoadas de homens franzinos.
Conheça mais sobre o livro e participe do projeto ✅
Rápidas e rasteiras
Só pra saber: o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyehu, foi ao Twitter na última quinta-feira para postar um agradecimento às mulheres israelenses e uma homenagem à própria mulher, Sara, em celebração à data. Infelizmente, nem todo o propalado trabalho social da Sra. Netahyehu é capaz de varrer para baixo do tapete as acusações de corrupção e tráfico de influência que pesam sobre ela. Juntamente com o marido, seu indiciamento foi solicitado à justiça em dois casos já comprovados. (AP) ✅
Apesar de admirador do trabalho do cineasta Matteo Garrone, respirei aliviado por Io capitano não vencer o Oscar de filme internacional. A história dos dois jovens que saem do Senegal para tentar chegar à Europa em busca de um futuro mais sorridente e, quem sabe, até de uma carreira musical, é crua e realista (com exceção de duas cenas dispensáveis; tipicamente garroneanas mas em completo desalinho com o estilo do filme), e os dois atores são fenomenais. Porém, para o diretor, toda a desgraça da viagem se resume ao trecho africano do percurso e a Europa se mantém como luz no fim do túnel. Como bem sabemos, nada poderia estar mais distante da verdade. Na chegada à Itália, o inferno espera pelos refugiados. A visão colonialista de Garrone decepciona e o filme poderia ser dedicado à primeira ministra italiana Giorgia Meloni e à sanha xenofóbica de seu partido, o Fratelli d’Italia. (AP) ✅
Não bastasse a alta qualidade das atividades da Acaso, é sempre um prazer ler a ótima e bem humorada prosa do Alexis. Boa escrita e bom humor andam difíceis nesses tempos esquisitos…