Abre-alas#4
Novembro é mês de chuva e de Flip. A bela homenagem que a Feira Literária Internacional de Paraty organizou para lembrar a brava Pagu sofreu com a inclemência pluvial e com o despreparo total da Enel, que deixou a cidade às escuras durante um dos dias do evento. Todos sabem que esta concessionária de energia é a mesma que não conseguiu evitar a falta de luz na área metropolitana de São Paulo durante quase uma semana no início do mês. A Flip da Pagu será lembrada como a Flip do apagão - ou Apocaflip, como quer a imprensa mais maldosa. Apesar das intempéries, quem esteve em Paraty testemunhou uma Flip política e inclusiva, graças ao planejamento coeso das curadoras Fernanda Bastos e Milena Britto. Os grandes nomes internacionais já não são mais o alvo principal da Festa, para desespero de uma elite saudosa que se ressente dos novos caminhos que vêm sendo trilhados já há algumas edições. Selecionamos algumas falas que deram o tom do discurso sustentado nessa Flip; que, aliás, atingiu a maioridade plena em 2023. Seguimos com uma homenagem a Buenos Aires neste momento chave da democracia argentina (faltam alguns dias para que Javier ‘el loco’ Milei assuma a presidência) e algumas palavras sobre o retorno de Frasier, agora no streaming.
Na Agenda da Acaso, uma novidade neste próximo sábado: um samba súbito na nossa sede em que todas e todos são bem-vindos.
E vamos ver se juntos a gente não chega onde quiser.
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Boa leitura!
Alexis Parrott - Editor ✅
A Flip 2023 em 15 falas
Festa Literária Internacional de Paraty sofreu com chuvas e apagão, mas aprofundou o caráter político das últimas edições

“Eu poderia dizer que Pagu foi uma mulher à frente do seu tempo, mas eu prefiro dizer que ela é à frente do nosso tempo também. (...) Pagu era uma mulher que tinha a coragem de mudar de ideia e de pensar diferente.”
Adriana Armony, escritora e professora, autora de Pagu no metrô (2021)
“A gente está vivendo um pouco uma cultura disso, em que a pessoa se contenta em ser uma celebridade um pouco louca e tosca (..) até que, de repente, enjoam e vomitam você da vidinha das pessoas.”
Flora Süssekind, professora e crítica literária, sobre o fenômeno das redes sociais
“Com frequência, os relatos que se passam em locais de classe operária são de dois tipos. Ou fazem ‘turismo de classe’, escritos a partir de outro lugar e pintam a classe operária como um zoológico pitoresco, fetichizam os personagens e a narrativa se põe a serviço desse olhar burguês. A segunda maneira é feita, talvez, a partir do próprio lugar do operariado e traz uma nostalgia mal entendida, de idealização desta classe. As duas maneiras me parecem injustas e perigosas.”
Alana Portero, escritora espanhola, autora de Mau hábito (2023)
“Me interessa (...) pensar os mitos andinos que estão relacionados com as montanhas, os vulcões, os terremotos, com os páramos; pensá-los precisamente a partir desta contemporaneidade raivosa e não como algo mítico, distante. Não me interessa a divisão entre mythos e logos. Para mim, o mithos é logos, e o logos é mythos. (...) E isto eu descobri escrevendo.”
Mónica Ojeda, escritora equatoriana, autora de Mandíbula (2018) e Voladoras (2020)
“Pelo menos no contexto moçambicano, é uma miragem o indivíduo pensar que pode usar a literatura ou qualquer documento escrito para fazer ativismo social ou político - porque ninguém lê. (...) Hoje, estima-se que metade da população [de Moçambique] não saiba ler nem escrever.”
Manuel Mutimucuio, escritor moçambicano, autor de Moçambique com Z de zarolho (2023)
“Há essa ideia [na literatura contemporânea] de você não ter condições de lidar com a diferença. A diferença da qual se fala é super domesticada, é espelho. A ideia de criar uma arte que seja reprodução de si mesmo, no sentido de criar uma autossatisfação, é algo empobrecedor. (...) Esse fim do mundo [a crise climática] é culpa nossa, e você quer se empoderar?”
Bernardo Carvalho, autor de Nove noites (2002) e Os substitutos (2023), entre outros, em debate organizado pela Casa Folha, parceira da Flip
“O que ocorre hoje, parece uma mudança de paradigma. Se antes nos importávamos com quem fundou Paraty, quem foi o urbanista (...), com os privilegiados do destino, hoje a gente não aceita mais essas explicações e queremos colocar em evidência aqueles também que quebraram pedras e calçaram as ruas e ergueram as casas e que fizeram muito mais. Talvez isso crie um desconforto entre os que já detinham privilégios e não se reconheçam nessa nova história que é contada hoje no Brasil.”
“Fala-se muito do trabalho solitário do escritor [mas] é impossível pensar em literatura sem pensar no coletivo. As minhas personagens carregam a história que nos trouxe até aqui.”
Itamar Vieira Jr., autor de Torto arado (2018) e Salvar o fogo (2023)
“O capitalismo nos culpa pelos próprios problemas sistêmicos. A epidemia de câncer é tratada só como predisposição genética. Ninguém culpa as águas poluídas, as comidas industrializadas, os alimentos com pesticida.”
Silvia Federici, filósofa e feminista italiana, na mesa em que participou na Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes), evento que ocorre em Paraty em paralelo à Flip.
“Queria dar continuidade às nossas conversas de mais cedo, lendo poesia e honrando o fato de que vai ter e está tendo sapatão na Flip.”
Jamile Pinheiro Dias, professora e tradutora, na abertura da mesa que mediou com Angélica Freitas e Dionne Brand
“Acho que para todos nós sempre haverá uma música que todo mundo gosta, menos a gente. (...) E essa ideia de que está todo mundo errado o tempo todo é parte da diversão, porque é parte da maneira como nos diferenciamos uns dos outros. Acho que muita gente ainda tem a impressão de que o gosto musical é pessoal, diz algo sobre quem nós somos. Mas para isso ser verdade, temos que gostar de coisas diferentes. Se todo mundo gostasse da mesma coisa, a música não seria mais pessoal.”
Kelefa Sanneh, estadunidense, crítico de música da New Yorker, autor de Na trilha do pop: a música do século XX em 7 gêneros (2023)
“[N]a última cena da Ilíada, o Aquiles devolve a Príamo o corpo de Heitor. (...) E eu estava lendo esta cena no local [na Bolívia] onde um guerrilheiro comunista [Che Guevara] foi assassinado e teve o corpo 30 anos desaparecido. E se a gente olhar para a história da América Latina, são incontáveis os corpos que são, ainda hoje, desaparecidos. Essa é uma prática que foi muito comum durante o período colonial, foi muito comum durante as ditaduras militares, e que segue acontecendo ainda hoje com a ação das polícias e das milícias. (...) Então, a Ilíada, por mais violenta que fosse, ainda garante o mínimo que é poder velar os corpos das pessoas que a gente ama.”
Luiza Romão, poeta, autora de Também guardamos pedras aqui (2021)
“...uma cidade como a que eu moro, Salvador, que é a cidade mais negra do mundo fora da África e é a cidade em que mais se matam pessoas negras no Brasil. Como elaborar isso esteticamente, de forma a comunicar às pessoas que estão vendo aquilo diariamente que a gente não pode continuar normalizando aquilo? Achar o meio termo entre a forma estética e o discurso é o desafio da literatura contemporânea.”
“A literatura negra é um lugar de onde se enuncia, um lugar propositivo de diálogo. (...) Falar a partir de um território não quer dizer falar do território, não quer dizer regionalismo. (...) O território é a multiplicidade.”
Jorge Augusto, professor, editor e poeta, autor de O mapa de casa (2023)
“Meu corpo é meu primeiro território e pertença.”
Glicéria Tupinambá, antropóloga e artista visual.✅
Enquanto isso… em Buenos Aires
Há 40 anos, Julio Cortázar visitava pela última vez a capital portenha. O autor de Bestiário e O jogo da amarelinha voltava ao país de sua infância e juventude para se despedir da mãe, a uma semana da posse de Raúl Alfonsín, que marcaria definitivamente o final da ditadura militar. Morreria dois meses depois, de leucemia, na Paris que escolheu como casa desde os anos 1950, porém, sem nunca abrir mão da nacionalidade argentina.
Nos dias que passou na cidade visitou amigos, concedeu entrevistas e falou sobre literatura e política - flaco pela doença, mas ainda fumando como sempre. O último registro fotográfico do artista e intelectual em Buenos Aires foi realizado em 3 de dezembro de 1983 por Dani Yako, para acompanhar o texto de uma entrevista concedida a Martín Caparrós e publicada 5 dias depois.
No momento preocupante em que a Casa Rosada se prepara para receber o ultradireitista Javier Milei, faz bem olhar pelo retrovisor e rememorar um dos grandes humanistas que a Argentina deu ao mundo. (AP) ✅
Crítica - Série
Frasier
Mesmo com as faltas sentidas do elenco original, Frasier retorna para divertir como o bufão pomposo e sentimental de sempre.
No início do filme O diário de Bridget Jones, de 2001, a protagonista está sozinha após o ano-novo, sentindo pena de si mesma e de sua condição de solteira. Após citar Glenn Close em Atração fatal, ela canta All by myself enquanto assiste na televisão a um episódio de Frasier. Engenhosamente, 30 anos da cultura popular estadunidense são sumarizados em uma única cena por meio da convocação de 3 ícones do cinema, da música e da TV. As gerações mais jovens talvez não saibam ou se lembrem do Dr. Frasier Crane, mas sua série foi, merecidamente, uma das mais celebradas do seu tempo.
O personagem apareceu pela primeira vez na terceira temporada de Cheers (NBC/1982-1993) para formar um triângulo amoroso entre o dono do bar “em que todos sabem seu nome”, Sam Malone (Ted Danson), e a ex-garçonete Diane Chambers (Shelley Long). Foi tão bem recebido pelo público que a participação prevista de poucos episódios se transformou em presença fixa até o final do programa, quando ganhou sua própria série.
Ao se tornar protagonista, o psicólogo Frasier deixa Boston após se divorciar e retorna à Seattle natal para assumir um programa de rádio em que conversa com os ouvintes ao vivo e os aconselha sobre seus problemas. Irá dividir um luxuoso apartamento com o pai Martin (John Mahoney), um policial viúvo e aposentado após levar um tiro em serviço. Os gostos esnobes de Frasier e seu irmão Niles (David Hyde Pierce), além de um despreparo emocional profundo para navegar pelas vicissitudes do cotidiano, contrastam com a forma mais simples e pragmática com que o pai enxerga a vida e daí é tirado muito do humor da série.
30 anos se passaram e agora Frasier é o pai tentando se reconectar com o filho Freddie, de volta a Boston e lecionando em Harvard. Embora nosso herói tenha trocado de papel, o abismo de ressentimentos entre uma geração e outra segue o mesmo – seria este o verdadeiro “ciclo da vida”? O grande mérito deste revival é a disposição do ator Kelsey Grammer em permanecer fiel ao espírito do programa original e ao personagem que o consagrou.
Por não ter conseguido deslanchar uma grande carreira cinematográfica após as 11 temporadas da série, sua figura se distanciou um pouco da atenção pública, ao contrário de atores de outros programas de sucesso da mesma época. Alguns dos protagonistas de séries como Friends e Seinfeld, escolheram melhor os trabalhos subsequentes, mantendo vivas na memória dos fãs as sitcoms que lhes serviram de trampolim, como Jennifer Aniston, Larry David e Julia Louis-Dreyfus.
A preferência por papeis dramáticos talvez tenha sido a âncora responsável por não deixá-lo zarpar, renegando o timing natural e a maestria na comédia física. Se foi isso mesmo o que houve, a lição foi aprendida e a volta de Frasier Crane, agora no streaming, merece aplauso. Não é um programa revolucionário, mas uma sitcom clássica competente, cumprindo todas as exigências do cânone e comprovando a longevidade do formato.
Mesmo com as faltas sentidas do elenco original, Frasier é o mesmo bufão pomposo e sentimental de sempre. Entre admitir uma derrota ou bolar um plano bem louco para reverter a situação, mesmo com poucas chances de sucesso, adivinhe qual opção ele escolhe? Ao contrário da Carrie Bradshaw de Sarah Jessica Parker no revival de Sex and the city, Frasier não tem vergonha de abraçar novamente o patético para arrancar risadas do público. Envelhecer não significa perder a graça e o ridículo sempre será bem-vindo, se traduzido em humanidade. (AP) ✅
Frasier: primeira temporada do revival, em cartaz no Paramount+
Agenda Acaso Cultural
Esta semana na sede da Acaso
09 de novembro | sábado | das 16:00 às 19:00h
Súbito Samba na Acaso
Toda a tradição do samba e cerveja gelada, uma prévia ideal para a noite de sábado.
O Súbito Samba é formado por:
Mariana Luduvice e Wal Oliveira – vozes
Flávio Feitosa – violão de sete cordas
Leo Viana – cavaquinho
Chico Abreu – surdo/tantan
Victor Magno - pandeiro
Outras informações:
acasocultural@gmail.com
A sede da Acaso Cultural fica em Botafogo, no Rio de Janeiro, em um casarão restaurado do início do século XX. Em breve, contará ainda com um anexo especialmente projetado para receber eventos variados – música, teatro, palestras, simpósios, congressos. É um espaço multiartístico completo, com hall de exposições, salas de aula, espaços para coworking, um ponto de venda de livros, revistas, discos, CDs, e outros objetos de arte e cultura relacionados ao acaso.
Venha nos conhecer, estamos na Rua Vicente de Sousa 16, Botafogo, Rio
Acaso indica
FUNK: Um grito de ousadia e liberdade
O imaginário do funk carioca através da história
EXPOSIÇÃO em cartaz no MAR - Museu de Arte do Rio
até 24 de agosto de 2024
Festival de Cinema Italiano - online e gratuito
Até 09 de dezembro
Filmes inéditos e clássicos
Rápidas e rasteiras
A fila de autógrafos pode ser uma boa medida para aferir a popularidade dos autores. Se na última Flip as pessoas se dispunham a esperar mais de duas horas para conseguir uma dedicatória da vencedora do Nobel Annie Ernaux, este ano a campeã no quesito “fila” foi Conceição Evaristo, lançando Macabéa, flor de Mulungu - uma releitura do clariceano A hora da estrela. Mesmo sem participar da programação principal, a escritora mineira foi uma das mais tietadas do evento. (AP) ✅
O show de Mariene de Castro no Circo Voador (RJ), no último sábado, foi um daqueles acontecimentos raros, difíceis de tirar da memória. Acompanhada de uma banda poderosa (não há outra palavra para descrever a fúria e entrega daqueles músicos), a baiana de Salvador honrou o dia do samba da maneira mais bonita possível, louvando a ancestralidade negra e a história do ritmo por meio das mulheres que melhor o entoaram. Além da presença anunciada do Jongo da Serrinha, quem surgiu ao lado da cantora lá pelas tantas foi Teresa Cristina, para surpresa e alegria geral. Mariene distribuiu flores, deu um banho de glitter dourado nos fãs grudados à beira do palco e, vigorosa, cantou como se deve cantar. Com sua voz e presença únicas, o palco se tornou altar, o repertório um manifesto e o espetáculo um ritual. (AP) ✅
#prontofalei
Postado pelo Dagsson ✅✅